17/03/2014 |
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Como a ELCV salvou minha vida |
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Por André Gomes
Me lembro que eu estava num relacionamento muito conturbado na época que ingressei como aluno na ELCV (segundo semestre de 2006) e também que eu trabalhava numa empresa de telemarketing bem no horário do curso, onde nunca se abriam exceções pra troca de períodos. Acabei faltando no primeiro dia por causa disso, mas enfrentando as regras protocolares da empresa em questão, eu disse ao meu supervisor imediato (um cara muito gente fina alias) que se não trocasse meu horário até o dia seguinte eu pediria demissão pois eu queria muito fazer o curso. Com muita dificuldade, não duvido, ele conseguiu a transferência do meu horário de trabalho pra começar exatamente no segundo dia de aula.
Nesse segundo dia, logo que cheguei em frente a escola (um dos, senão O teatro mais antigo do país, chamado Cine Teatro Carlos Gomes) vi um gordinho sentado com mochilas ainda nas costas, e deduzi que era da ELCV,perguntei pra quebrar o gelo e conhecer alguém do curso, como tinha sido o primeiro dia, e ele respondeu com um sotaque espanhol carregadíssimo (que mais tarde soubemos se tratar de boliviano) que houve apresentações de todos, o que serviu pra quebrar a tensão. ‘’Há males que vem pra bem’’ pensei na mesma hora, pois tímido como sou, odeio apresentações em público.
Dali pra frente, nesse primeiro semestre, houve muita coisa nova;
professores incríveis com novidades (mesmo já havendo internet, vídeos, musica e arte em geral ainda não era tão rápido e fácil como hoje pra fazer downloads ou simplesmente ver online) cinemas de diversos países, formas e conteúdos muito diferentes do que estamos habituados (nunca tinha ouvido falar de filmes como ‘’Os Olhos da Cidade São Meus’’, ‘’O Homem Que Odiava as Mulheres’’, ’’A Hora e a Vez de Augusto Matraga’’) colegas com idéias semelhantes, muita vontade de realizar, produzir, filmar... As amizades foram se desenvolvendo, e mesmo antes de acabar o ano, todos nós, ou pelo menos a grande maioria, posso garantir, já tinha feito grandes amigos pra vida, aqueles que duram até hoje.
Passado fim de ano, meu relacionamento terminou, fiquei acabado, e precisava realmente fazer algo, mas nesses momentos a derrota e falta de vontade de qualquer coisa fala bem alto e tenta tapar nossos ouvidos. Graças a bons amigos resolvi continuar o curso, mesmo chateado, e meio blasé demais, como uma colega notou meses depois.
(Na época tive que procurar no dicionário o que significava blasé!)
Nesse inicio de segundo semestre, embora já houvesse acontecido tanta coisa interessante no inicio do curso como já mencionei, ainda havia pouca pratica nas aulas, e algumas pessoas estavam querendo desistir. Um pouco de desanimo pairava, ou melhor, assombrava as portas daquele teatro velho a noite, horário que tentávamos aprender a fazer, realizar e pensar a nona arte. Muita técnica e teoria nos foi passada no primeiro semestre, mas como qualquer estudante apaixonado e dedicado, todos queríamos mais, muito mais. É engraçado pensar, que nós não fomos a primeira turma daquela escola (fomos a 3˚) já que assistimos sua maior revolução que veio no inicio desse segundo semestre. A nossa coordenadora Monica Cardella, resolveu dividir a responsabilidade com outra coordenadora, essa Pedagógica, Moira Toledo. Com as duas juntas, tudo se renovou pra valer!
No primeiro semestre, tínhamos aulas separadas por dias, direção, produção, roteiro, foto e som (no mesmo dia com a turma separada em duas) história da imagem. Mas precisávamos não apenas de pratica, mas de algo palpável, algo que sentíssemos que estávamos realizando de fato. A Moira espertamente verificou que a maioria dos estudantes queriam fazer direção (nas turmas anteriores a escola era dividida em alunos de direção, foto e roteiro) e resolveu dar a experiência a todos, literalmente!
Pra se ter uma idéia de como a escola tinha um viés livre e democrático, mesmo antes do fim do primeiro semestre, o professor de roteiro passou uma pesquisa pra identificar as impressões dos alunos sobre suas aulas, pra ver se elas não eram ‘’implacáveis’’ demais. Lembro bem como nós éramos revoltadinhos, e de como falamos tudo e mais um pouco na pesquisa. Engraçado, como essas coisas ao invés de nos afastar (professores, coordenadores, alunos) nos deixou tão mais a vontade, e nos fez desenvolver uma empatia comum a praticamente todos os envolvidos ali naquele ambiente.
A Monica sempre se doou demais pra escola, mas precisava de ajuda, que veio na forma da Moira que já era uma estudiosa do cinema, e acrescentou muito no que veio dali em diante. Embora houvesse uma evasão mínima, ainda continuamos pra enfim ir pra pratica, e tivemos essas aulas e posteriormente diárias de gravação resultando num exercício chamado 8/2 (em homenagem a Federico Felinni e seu clássico) por causa das 8 semanas que teríamos pra realizar o exercício em questão (foi cogitado o titulo de 8 semanas e meia de amor, mas logo descartado não sei porque).
O exercício consistia na divisão de toda a turma em grupos de realizadores de seis a nove estudantes aproximadamente. Todos escreveriam um roteiro de no máximo duas paginas, e todos iriam dirigir o roteiro de algum colega, e o que escreveu, o roteirista, iria pegar a função de produtor. Em cada produção que deveria ter uma diária cada, todos os integrantes iriam rodas nas funções; diretor de foto, operador de som, elétrica, produção e roteiro, direção, assistente de direção, assistente de foto e assistente de foto e assistente de produção.
Sendo assim, tivemos uns dois meses, talvez nem isso, pra aprender o básico de tudo, inclusive elétrica, muito inusitado pra todos, mas extremamente necessário pois como se faz cinema sem luz? E sem energia elétrica? Coisas que não passam na nossa cabeça, mas na hora do vamos ver, alguém tem que assumir essa função. Aprendemos na pratica essa lição. Portanto, além de tudo, o exercício valeu pra tomarmos uma dose de humildade, e se alguém tinha aquele sentimento de cinema=glamour, foi ali que ele se dissipou.
Todas aquelas aulas, e toda aquela gente trabalhando em prol de alguma coisa me motivou novamente. Eu quis fazer, realizar e ajudar. Nossa turma, batizada pelo professor de roteiro de turma da testosterona, que depois viria a se tornar a Corja Filmes, se empolgou demais com as produções, e todo mundo estava na mesma onda, querendo arrebentar, fazer o melhor filme de nossas vidas, chamar a atenção, experimentar, ousar, enfim, tudo que o veiculo, a arte do cinema pudesse nos oferecer.
É claro que ignoramos a principal lição que nosso professor de direção nos deu que foi ’’Errem!’’. Ele disse que nos preocupássemos com realizar sem medo de errar, pois iriamos errar, afinal era nossa primeira experiência. Ele não estava nos desencorajando, ao contrário estava dando a força que precisávamos pra encarar o set sem medo. Era nossa primeira vez comandando uma equipe de cinema (no caso quando diretor) e sendo comandado (no caso das outras funções). E ninguém conhecia aquele êxtase misturado com frio na barriga que passa pela gente quando entramos no set.
E erramos. Erramos muito! Mas foram erros premeditados, erros inconscientes, erros de falta de experiência, e não de falta de intenção ou de compreensão.
E com aquilo acontecendo, com todo aquele povo junto fazendo, falando, pensando, discutindo, assistindo tudo que fizemos, foi que pensei e senti no quanto podemos optar pelo sofrimento. E eu optei por não. Não ao sofrimento. Podia dizer que a arte me salvou, que o cinema me salvou. Pode até ser, mas também foi a ELCV, e as pessoas que estavam lá comigo.
PS: até hoje ainda tenho frio na barriga e êxtase ao entrar num set, estando na função de diretor ou de ajudante de contra-regra.
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